Por que cuidar de si?

por Andreia Magliano
banhodegas

foto: A banheira. 1886 Edgard Degas

Desemprego. Realidade que assola boa parte da população brasileira hoje e que também é a minha. Medo, insegurança, desânimo,  revolta, falta de autoestima: conhecidos companheiros de quem enfrenta essa situação. Mas e se por um exercício mágico, um jogo de faz de conta (como fazem as crianças) eu transformasse esse meu estado em um grande momento de liberdade?

Se a realidade é  psíquica (como quer Jung) ou seja, se criamos pelo pensamento e pela imaginação significados que podem não ter nenhuma relação com o significante (como querem os pós-estruturalistas) a realidade exterior pode ser significada livremente. O que quer dizer em palavras simples que eu posso enfrentar os fatos da minha vida com certa liberdade de sentir. Posso viver minha demissão como uma injustiça e violência atroz e direcionar toda minha energia psíquica para cultivar estes sentimentos de mágoa e depressão ou posso enxergá-la como uma oportunidade de liberdade, canalizando toda minha potência para a criação do futuro bonito que está por vir.

No primeiro caso o meu foco são os outros, no segundo minha atenção está toda voltada para cuidar de mim mesma. E quem realmente está precisando de cuidado? Será que vale a pena perseguir a verdade sobre o pretexto de cuidar de quem ficou? Será que podemos de fato cuidar dos outros sem cuidar de nós mesmos? Ou isso seria antes, atribuir a nós  uma falsa importância e uma insubstituibilidade irreal? Ninguém é insubstituível em nada, mas apenas em uma coisa: cuidar de si.

O grande pensador da modernidade e ativista francês Michel Foucault, muito conhecido no Brasil por sua obra Vigiar e Punir, depois de anos militando pela liberdade dos outros criticando a lógica de controle e dominação nas prisões, hospícios e escolas,  finaliza sua vida perseguindo a sua liberdade interna, que ele acredita só pode ser conseguida no cuidado de si mesmo.  Nessa bela entrevista “A ética do cuidado de si como prática de liberdade” ele conta, entre outras coisas, como encontrou na filosofia antiga e em mestres como Sócrates e Platão a inspiração para o autocuidado.

E o que é este autocuidado? É importante esclarecer, pois hoje é facilmente confundido com o individualismo. Não estamos falando somente de cuidar de sua aparência, que pode estar meio abatida depois de uns dias chorando embaixo do edredon. Nem somente de sua saúde que certamente está abalada pela carga de stress, melhorar assim sua alimentação, fazer atividades físicas, tudo isso era fundamental para os gregos antigos que davam muita importância para o cuidado da physis.  

Mas para além de “dar um up” na aparência física, precisamos de um autocuidado mais profundo de que nos lembra Sócrates com suas palavras inquiridoras:

Meu caro, tu, um ateniense da cidade mais importante e mais reputada por sua cultura e poderio, não te pejas de cuidares de adquirir o máximo de riquezas, famas e honrarias, e de não te importares nem cogitares da razão, da verdade e de melhorar quanto mais a tua alma? [1] 

Neste sentido precisamos cuidar da nossa psiqué, dos nossos pensamentos e sobretudo dos sentimentos que vamos cultivar neste momento delicado, pois eles serão as estruturas sobre as quais vamos construir o nosso futuro.

É claro que é importante viver o luto  e a perda de um emprego é sempre a morte de algo dentro e fora de nós. Portanto sente, chore, grite e viva a dor que for necessária, mas nenhum segundo a mais do que o necessário. Abra-se para a imensa possibilidade da vida, para todos os campos de experiência que se apresentam diante de você. E talvez você vá sentir uma felicidade e uma liberdade não antes experimentadas.

Imagine, sonhe com a vida como ela pode ser. Faça contas, planos e planejamentos, é preciso… Ah… mas não deixe de sonhar… Não deixe de brincar deste faz de conta onde todas as possibilidades de ser estão na mesa. Veja a vida como algo maior, como um espaço para cuidar dos seus valores, para ver o que realmente importa e te faz feliz. E aja, movimente-se nos seus círculos de amizade, vá fazer o trabalho voluntário para o qual nunca tinha tempo, dedique-se aos estudos que sempre ficavam em segundo plano, arrume aquele armário que estava te incomodando há tantos dias, brinque com seus filhos, netos, sobrinhos, cozinhe um dia para seu marido ou esposa. E tenha amor a vida, porque essa dificuldade hoje pode ser uma porta escancarada para um amanhã mais feliz. Afinal você não estava mesmo muito contente ali, não é mesmo?

Meu caro, pois tu, um paulistano da cidade (que pensa ser) a mais importante e reputada por sua cultura e poderio, não te envergonhas de adquirir o máximo de riquezas, famas e honrarias e de não te importares de melhorar quanto mais a tua alma?

Esse é o convite que Sócrates fez a Foucault, Foucault fez a mim e que faço a você hoje: o que podemos pensar, sentir e fazer na vida que nos ajude a melhorar a alma?

[1] Defesa de Sócrates apud HADOT, P. O que é a filosofia Antiga?Loyola: São Paulo, 1999, p. 55
>> para acessar o livro online clique aqui

 

 

32 thoughts on “Por que cuidar de si?

  1. Parabéns, lindo e texto, oportuno e uma importante reflexão para o momento atual. Poetico, muito inspirador. 👏👏👏💋

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  2. Parabéns, Andreia, pela postagem concisa e centrada em argumentos tão sólidos. “…E o que é este auto cuidado? É importante esclarecer, pois hoje é facilmente confundido com o individualismo…”
    Tão comum a profusão de interpretações do auto cuidado, o homem na sua natureza egoísta traça limites à volta, para debruçar-se sobre seus próprios muros a fim de enxergar apenas para fora e proteger apenas o lado de dentro.
    Sucesso e Abraços!

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  3. Andreia, receba os meus aplausos e a minha admiração pelo belo texto que nos leva a muitas reflexões!
    Parabéns e sucesso sempre!
    Sandra LC Perazzo

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  4. Muito bom. Seria maravilhoso que muitos tivessem acesso a este texto. Pois estamos vivendo na atualidade o descaso com nossas almas a ponto de infelicidade de ver tantos se entregando as fugas nas drogas e no suicídio. Parabéns. Que vc possa levar esta esperança a pessoas que perderam por perder o emprego ou por viver outras crises.

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  5. Muito bom. Seria maravilhoso que muitos tivessem acesso a este texto. Pois estamos vivendo na atualidade o descaso com nossas almas a ponto de infelicidade de ver tantos se entregando as fugas nas drogas e no suicídio. Parabéns. Que vc possa levar esta esperança a pessoas que a perderam por perder o emprego ou por vivenciarem outras crises.

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  6. Texto muito bonito sobre a transformacao que uma perda pode promover em alguem. Quando se perde algo (um emprego, um ente querido, um relacionamento…) e necessario aprender a viver de uma nova forma. Algo morre para dar origem a uma nova vida, cheia de possibilidades e novas escolhas.
    Parabens Andreia, por descrever com tamanha clareza sobre a elaboracao do luto e as possibilidades de aprendizado que ela proporciona.
    Bjo grande

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  7. Excelente texto para quem está desempregado e para quem está empregado também afinal me parece oportuno para todos olhar para as questões da alma

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  8. Parabéns Andreia, Lindo texto incentivador do autoconhecimento (conhece-te a ti mesmo). Uma excelente pesquisa e contribuição.

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  9. Importa te viver cada momento, mas deixar cada um deles em seu tempo. O passado o presente e usar o futuro como meta, mas aproveitar o presente com o que nos for apresentado. Gratidão pela oportunidade de mais um aprendizado. Boa sorte na jornada

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